Uma pequena seleção de desenhos antigos da Coleção de Arte de Doentes do Museu Miguel Bombarda, em Lisboa

A small selection of old drawings from the Patient Art Collection of Miguel Bombarda Museum, in Lisbon, one of the oldest and best in Europe, including Outsider Art

Ao tentarem denegrir a Colecção de Arte de Doentes do Hospital Miguel Bombarda argumentou-se que muitos desenhos haviam sido destruídos ou tinham desaparecido, e os únicos com valor seriam os de autoria de Jaime Fernandes. Argumento desde logo falacioso ou de manifesta ignorância histórica, pois sempre foi prática corrente na grande maioria dos hospitais psiquiátricos do mundo, destruir-se os desenhos ou pinturas de doentes.

E em Portugal o Hospital Miguel Bombarda foi a instituição onde essa destruição menos se verificou, em todas as épocas, sendo por isso a sua coleção uma das mais antigas e valiosas da Europa.

Atinge cerca de 6000 desenhos, pinturas, azulejos, pequenas esculturas ou escritos de doentes (devidamente inventariados e fotografados na sua quase totalidade aquando da demissão do diretor do Museu em Março de 2011), parte deles selecionados, desde 1902, incluindo várias sub-coleções, como a recolhida ao tempo do Prof. Sobral Cid (anos 1920 e 1930), as provenientes de diferentes ateliês, ou de projectos específicos, na orientação ou no tempo, como de arte-terapia.

A propósito, refira-se que os Arquivos Clínico, Médico-Legal e Administrativo, com centenas de milhares de documentos, um tesouro para o estudo da assistência ou da sociedade, são únicos em Portugal e raros em termos internacionais, por integrarem, sem hiatos, sistematicamente, todos as décadas desde a fundação em 1848, sendo de notar que a maioria das instituições guardavam a documentação em sótãos sujeitos a intempéries ou a destruíam.

A Coleção do Museu integra ainda 6000 fotografias desde o século XIX, material clínico, mobiliário, ou pequenas sub-coleções, de tatuagem ou de croquis de doentes.

Apresentamos a seguir uma pequena seleção da parte mais antiga da Coleção de Arte de Doentes, com obras únicas internacionalmente, comparáveis com as da famosa Coleção Prinzhorn, e notável pela sua pureza criativa e artística.

1 – Agostinho Alcobia, (parte de corpo ?), 1912-1913, lápis azul s/ papel vegetal, 37,5 x 52 cm, (inv. nº 312)

[ Traço firme a azul, parte não determinada de corpo humano, desenho de pendor modernista orgânico ]

2- José Gomes, 1914, fotografia, 30 x 21 cm, (Arq. Fot. nº CCC 142)

[ Performance pré-surrealista sem paralelo mundial, pela sua originalidade e antecedência histórica. Fotografia de profissional identificado, certamente encomendada, tirada na alameda das oliveiras do Hospital Miguel Bombarda, com dedicatória de José Gomes ao Diretor do Hospital no verso, com o autor de vestes cortadas, 4 pessoas, uma com guitarra portuguesa, outra com pau, 4 cães, uma cabra, bandeira e dizeres ]

3- José Gomes, 1913, fotografia, 30 x 21 cm, (Arq. Fot. CCC 141)

[ Instalação com participação humana, sem paralelo mundial pela sua antecedência histórica. Fotografia profissional, certamente encomendada pelo autor José Gomes, com este rodeado por latas e por finos ramos secos, com chapéu de tampa de lata e dizeres em papel repetindo a palavra “razon” ]

4 – Ângelo de Lima, “Retrato do doente Pragana”, 1919, tinta negra s/ papel, 17,8 x 13,5 cm, (inv. nº 1809)

[Raríssimo desenho de Ângelo de Lima (1872-1921), grande poeta (e também pintor) publicado por Fernando Pessoa em 1915 na revista Orpheu. Ângelo de Lima esteve internado no Hospital Miguel Bombarda desde 1901 até ao seu falecimento em 1921 ]

5 – José Picão, (porco ?), 29/12/1919, tinta vermelha s/ papel com linhas, 11 x 32,2 cm, (inv. nº 196)

[Traço rápido e espontâneo ]

 

6 – José Picão, (cavalo), 1919, tinta preta s/ papel, 14,2 x 10,5 cm, (inv. nº 197)

7 – Adelino Pessoa, (cena rural), 1929-1931), lápis de cor s/ papel, 17,2 x 25,7 cm, (inv. nº 201)

 

8 – Adelino Pessoa, (homem e mulher), 21/8/1929, lápis s/ cartolina de embalagem, 10,8 x 12,7 cm, (inv. nº 203 verso)

9 – Joaquim dos Santos, (figura humana),1933, lápis s/ papel, 22,5 x 17,4 cm, (inv. nº 216 frente)

[ Forma de figura humana frequentemente desenhada por doentes com perturbação mental e que Jean Dubuffet tornaria quase um ícone, ao criar mais de uma centena de pinturas com esse motivo. No entanto, este desenho de Joaquim dos Santos apresenta uma composição sui generis, ao adicionar duas pequenas figuras de cada lado da cabeça e outras duas, ainda menores, em cada mão ]

10 – Joaquim dos Santos, (casa), 1933, lápis s/ papel, 22,5 x 17,4 cm, (inv. nº 216 verso)

[ Desenho parcialmente composto por números, comparar com desenho de casa publicado por Prinzhorn, Fig. 10 pag. 49 ]

11 – Joaquina Soares, (auto-retrato), 1929, lápis de cor s/papel, 19,8 x 16,2 cm, (inv. nº 292)

[ As pessoas dentro de vários locais do seu corpo, página nº 5 de valiosíssimo conjunto de 20 pinturas de Joaquina Soares e de textos da própria descrevendo as suas alucinações ]

 

12 – Joaquina Soares, (auto-retrato), 1929, lápis de cor e tinta s/papel, 19,8 x 16,2 cm, (inv. nº 295) , nº 8

[ Doenças no seu corpo, página nº 8 do conjunto referido na pintura anterior ]

13 – Álvaro Pedroso, (rosto), 15/11/1932, lápis de cor vermelha s/ papel, 19,7 x 16 cm, (inv. nº 252)

[ Rosto de extrema estilização e beleza ]

14 – Maria Amélia Neves, (figura vista de cima), 1932-1933, lápis s/ papel, 16 x 20 cm, (inv. nº1793)

[ Este desenho (de traço rápido) é extremamente invulgar em termos internacionais e em qualquer “estilo”, ou mesmo único, ao representar ou sintetizar uma figura humana observada de cima ]

15 – Ilda da Conceição, (abstracto), prov. 1934, carvão s/ papel, 15,8 x 19,5 cm, (inv. nº 262 frente)

[ Composição abstracta (ou aparentemente abstracta …), antecedendo o expressionismo abstracto das décadas de 1940 e 1950. Tipo de desenho muito frequente em alguns doentes, como os oligofrénicos e os autistas, semelhante aos certamente realizados desde há muitos séculos (e destruídos). Desta doente conservaram-se 15, todos diferentes, e conservaram-se 6 de outra doente, de 1924 ]

16 – João Sardinha, (burros e vasos com plantas), 1938-1942, lápis s/ papel, 16 x 20 cm, (inv. nº 386 frente)


Sonhos

Sonho suave e bom que me envolveste
Não me deixes sozinho sobre a terra
Se vais, contigo esta minha alma encerra,
Leva-a contigo a Deus d`onde vieste.

Como do céu minha alma assim mereceste
Que por ti d`ele um sonho se descerra
Aì com que frenesi que a ti se aferra,
Sonho, a ti sonho, esta alma a que desceste

Sonhos que em vossas asas me tomais
Em meio do caudal em que derivo
E em vir a mim dos outros me estremais.

Sonho, ó último sonho de que vivo
Ai não me deixes tu como os demais.
Retém-no em meu seio – ó meu senhor! – cativo

Ângelo de Lima